“The times we had”
Oh, when the wind would blow with rain and snow, were not all bad
Minha mãe não cozinha mais. Há pouco mais de um ano, decidiu “se aposentar”, como ela mesma diz. Estava muito sozinha na casa dela, que fora da minha avó paterna, depois dos meus pais. Eu nunca morei lá. Quando minha avó Nina faleceu, o combinado era que a gente se mudaria da casa onde morávamos, na Saúde (que pertencera aos meus avós maternos), para a casa da vó Nina, herança para o meu pai.
Mas eu nunca fui para lá. Com 21 anos, decidi que era hora de sair de casa e alçar voo, abrir as asas. Saí. Aluguei um apartamento pequeno no bairro da Conceição, mobiliei como pude. Minha mãe, de tradições antigas, de vez em quando comprava coisas para quando eu me casasse, segundo ela. Como não me casei (naquele momento), ela me deu o que tinha comprado para o meu “enxoval”: algumas louças, panos de prato, roupas de cama, toalhas. Fiquei surpresa com aquele presente, mas gostei muito. Até pouco tempo, tinha ainda algumas peças desse primeiro enxoval da minha vida.
Foi ali, naquele apartamento pequeno e sem muitas coisas, que decidi aprender a cozinhar.
Minha mãe sempre foi uma grande cozinheira, embora ela nunca tenha se dado o devido crédito. Aprendeu pouca coisa com a mãe dela, minha avó Maria, como o cuscuz paulista delicioso que ela fazia. Foi com minha vó Nina que ela aprendeu, de fato, a fazer tudo: nhoque, massa fresca, almôndegas, bracciole, bife à milanesa, e o molho de tomate imbatível de todos os domingos.
Como disse ali em cima, minha mãe não cozinha mais. Com ela, aprendi por observação: nunca teve paciência para ensinar e fazia tudo “a olho”, como ela dizia.
Mas eu vi. Era eu quem a acompanhava na feira, e fazia questão de provar todas as frutas e legumes que me eram oferecidos pelos feirantes (até hoje mantenho esse hábito, mesmo sabendo dos hábitos discutíveis de higiene).
Aprendi a olho, também eu.
Domingo de feira
Quando me vi sozinha naquele primeiro apartamento solo, decidi que seria a hora de aprender a cozinhar de verdade, a fazer aquelas delícias todas que invadiam nossos domingos antigos, com cheiro de feira, de peixe fresco embrulhado no jornal, de fruta amadurecendo nos saquinhos plásticos, um naco de gorgonzola quando dava, um saquinho com picles, tremoços ou azeitonas, outro com parmesão ralado na hora, que minha mãe fazia questão. Nossos luxos.
A gente não tinha muita grana. Bem pouca, na verdade. Mas ninguém passava vontade, porque dona Dalva, minha mãe, usava o talento que possuía para cozinhar qualquer coisa que nos apetecesse e que o bolso permitisse comprar.
Foi assim que ela aprendeu a fazer esfihas deliciosas, feijoada, peixe com molho, risoto de camarão ou frango, os bolinhos de camarão ou miolo (cérebro bovino), receita esta herdada da vó Nina, quibe frito, quibe de bandeja, pimentão recheado, berinjelas assadas com carne moída, tudo, tudo. De vez em quando apareciam coisas novidadeiras, como um certo “frango à Taffarel”, receita publicada no jornal, uma referência ao ex-goleiro, campeão do mundo em 1994. Lembro que era gostoso o frango, com ervilhas em lata e pedaços de bacon, ficava bom.
Mas tinha uma receita que eu amava muito e sinto uma falta imensa, por isso me dediquei a reproduzi-la de cabeça: bolinho de batata. É um bolinho empanado e frito em óleo quente, cuja massa é feita apenas de batata amassada, com um mínimo de farinha, e o recheio é de carne moída bem temperada com cebola, alho e cebolinha, a trinca sagrada dos temperos da minha mãe. Parece simples, mas tem seus truques: se a batata estiver úmida demais, o bolinho estoura ou fica oleoso. Se houver muita farinha, fica duro e com gosto de amido cru. Truques, segredos.
Às vezes, ainda hoje, sinto o cheiro daqueles domingos antigos, do carrinho de feira com peixe, jornal, frutas, conservas, queijos. A minha infância e adolescência inteirinhas tocaram aquele carrinho (que às vezes perdia a rodinha no meio da rua e era um sufoco), aquelas sacolas (que eu ajudava a mãe a carregar, quando a gente ia, só nós duas, à feira, o que era quase sempre), aquelas tigelas antigas, da época do casamento de dona Dalva e seu Antonio, meus pais, aquela sobremesa cor-de-rosa feita de gelatina, clara de ovo batida e um creme com leite condensado e gemas. Sinto o cheiro disso tudo, e sinto uma falta imensa, também, daqueles sabores antigos, daquelas memórias agridoces. Nem tudo era bom, tinha muito sofrimento também, mas essa parte era boa. A melhor parte, eu acho.
Meu pai não está mais aqui há quase 4 anos, minha mãe não cozinha mais, e restou a mim manter o legado da cozinha vivo. Não reclamo, desde meus 21 anos estava me preparando para isso, para ser eu a cozinheira da vez. Gosto, adoro receber, mas falta um pedaço. É estranho, falta sempre um pedaço.
Bolinhos de batata
Domingo passado, tinha purê sobrando na geladeira e filés de frango. Rafael estava com vontade de comer frango à milanesa, mas não queria que eu fizesse, para não me dar trabalho. Mas eu senti de novo aquele “cheiro de domingo” preso na minha alma e fui para a cozinha cedo.
Fiz a farinha de rosca como vi minha mãe preparando a vida toda: tostando os pães franceses duros, no forno, depois batendo todos no liquidificador até transformá-los em uma nuvem de farinha bege. “Farinha de rosca do mercado não presta”, dizia dona Dalva. Temperei os filés com alho, cebola, limão, pimenta-do-reino preta (o toque meu, que amo pimenta) e orégano. Chamei as crianças para ajudar a passar, cuidadosamente, os filés temperados no ovo batido, depois na farinha.
Com o purê, fiz bolinhos de batata, com a pura função (inicial) do reaproveitamento das coisas, e os recheei com muçarela em pedacinhos, temperada com azeite e mais orégano (orégano era a única erva onipresente na cozinha de minha mãe, nada de tomilho, dill ou qualquer outra coisa, apenas orégano; quando muito, manjericão fresco, que ela plantava em vasos no quintal).
Convoquei as crianças de novo e, juntos, transformamos aquilo tudo em bolinhos de batata redondos. Coube a mim fritar filés e bolinhos em óleo quente, com o controle da chama e da temperatura que só uma vida de observação da própria mãe conseguem reproduzir.
E, assim, nasceram duas tigelas de filés de frango à milanesa e bolinhos de batata com muçarela, daqueles cujo recheio estica, tão bom, quando são partidos ao meio.
Comemos na nossa mesinha no quintal, que nem a gente fazia antigamente, na casa dos meus pais. Uma saudade imensa da minha família primeira, aquela que era constituída, então, pela Dalva, pelo Antonio, pelo Marcello e por mim. De alguma forma mágica, queria muito que todos estivessem ali, queria muito que Rafael tivesse conhecido meu pai, queria muito que fosse ela, a Dalvinha, a cozinhar para nós. Mas entendi que, de alguma forma, eles permanecem aqui com a gente, meu pai em pensamento e no coração, minha mãe em pequenas aventuras e passeios, pra ela poder experimentar comidas novas e diferentes, estar perto.
Horas depois, Olívia e eu planejávamos o aniversário dela, com o tema “Como treinar seu dragão”. E, no dia seguinte, já na casa do pai dela, Olívia me manda uma mensagem do celular, com seu linguajar e escrita de menina de 10 anos. “Tive uma ideia: e se a gente fizesse pra festa os bolinhos de batata que nem você fez, porque eles parecem pedras, e os dragões gostam de pedras?” “Claro que sim, minha filha. Faz todo sentido!”
Claro que sim.
“The times we had
Oh, when the wind would blow with rain and snow
Were not all bad
We put our feet just where they had, had to go
Never to go
The shattered soul
Following close but nearly twice as slow
In my good times
There were always golden rocks to throw
At those who
Those who admit defeat too late
Those were our times, those were our times (…)”
(Postcards from Italy – Beirut)
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