Stereophonics. Quando ouvi estes primeiros versos, naquele dia, no rádio do carro, fui levada para outro lugar no espaço-tempo. Um lugar em que eu cantava o refrão, “so maybe tomorrow I’ll find my way home”, com a voz ligeiramente rouca, os olhos fechados de leve, como se um ventinho de fim de tarde me soprasse os cabelos.
Eu não lembrava do nome da banda, mas imediatamente identifiquei no painel. E era isso, Stereophonics no rádio, a melodia antiga ecoando nos ouvidos e saindo pela garganta, suave, o sorriso de quem se deixou levar pela coisa certa, na hora certa, no lugar certo.
A mesma música que ouviria mais tarde, por dias e dias, e que ouvi também no fim de noite, após assistir a um filme precioso: “O Sabor da Vida”, do cineasta vietnamita Tran Anh Hung, com a diva do cinema francês, Juliette Binoche, delicada e firme em seu papel de cozinheira genial, e seu par romântico na telona, e ex-companheiro da vida real, o ator Benoît Magimel – um retrato de quando a arte e a vida se tocam com fios invisíveis.
É um filme de comida e, claro, dá fome. Toda aquela dança da cozinheira em torno das panelas, o fogão antigo, à lenha, a casa de pedra com sua cozinha espaçosa, as panelas de cobre, os tachos, as conchas, a horta de onde se pode escolher uma cenoura e assim, sem cerimônia, mordê-la direto da terra, num tempo em que os humanos não se preocupavam com micro-organismos nocivos. Ou, prefiro pensar assim, talvez fosse um tempo em que a gente desfrutava de uma harmonia um pouquinho maior com a natureza.
Mas é também um filme de amor. Daqueles amores que se desenvolvem em fogo lento, a passo lento, gentil. Sem pressa, mas sempre em frente. Sessão vazia, segunda-feira, quase que dava para sentir o aroma do pot-au-feu cozido por horas, com suas misturas potentes de ingredientes, fogo e calor.
Os anos passam e, para mim, ainda existe algo de mágico em assistir a um filme no cinema. Há anos não fazia isso, exceto pelas animações divertidas que minha filha adora ver.
Por mais que os streamings sejam ótimos, as televisões tenham crescido em tamanho e importância, os sofás tenham ficado mais confortáveis e os petiscos, mais acessíveis, nada se compara a escolher a melhor companhia, os assentos mais agradáveis, nem tão perto, nem tão longe da tela, e aguardar que as luzes se apaguem para que o projetor faça seu serviço de mago. E a gente olhe para o lado e sorria, assim, sabendo que é um privilégio desfrutar de algumas horas no silêncio da imensa sala de cinema, interrompido apenas pelo som do filme e pelos cochichos que a gente troca de vez em quando com a pessoa querida ao nosso lado.
As histórias da telona dialogam conosco, e nós dialogamos com elas, com um suspiro abafado, uma lágrima e a boca aberta ao observar, ali, tanta coisa que a gente vive e sente aqui também. Quando amor e cozinha se misturam, sempre dá bom. Sempre.
“So maybe tomorrow
I’ll find my way home”
(“Maybe Tomorrow” - Stereophonics - 2003)
Talvez amanhã eu encontre o caminho de casa. Ou, talvez, já tenha encontrado e a casa seja aqui, dentro da gente. Ou a casa é numa sala de cinema, aconchegante, vendo juntos aquela dança das panelas e das chamas a rodopiar, se confundir, se fundir e se amar, como é apenas natural.
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PS: o nome original do filme, em francês, é “La Passion de Dodin Bouffant”, “A Paixão de Dodin Bouffant”, o nome do parceiro da Juliette na trama. Mas eu gostei de verdade da versão espanhola para o título do filme: “A Fuego Lento”. Acho que traduz demais o espírito da história. O filmaço ainda está em cartaz, é todo falado em francês e é uma delícia para acomodar os sentidos dentro da pele. Escolhe bem o seu par e corre pro cinema, depois me conte o que achou (e o que você escolheu para comer após a sessão, porque o filme dá uma fome danada).