Há uns anos, a jornalista e escritora Eliane Brum escreveu um artigo muito bacana sobre sua busca por uma escrivaninha Xerife, daquelas que tem inúmeras gavetinhas e uma espécie de porta flexível, que permite fechar o móvel com todos os seus objetos dentro, longe da vista de curiosos.
Nunca esqueci desse texto nem daquele móvel, tão a cara de um escritor. Quando começamos a busca por móveis para nossa nova casa, Rafael vasculhou os grupos de desapego do bairro e, numa dessas garimpagens, encontrou para mim uma escrivaninha, dessas antigas, com suas inúmeras gavetinhas, exatamente como aquela descrita pela colega Eliane – só falta mesmo a portinha flexível.
Detalhe: eu nunca tinha comentado com ele sobre esse desejo de ter um móvel desses, só para mim. E agora, eu tenho. Instalado no meio da bagunça da nossa sala nova, com muito mais luz e espaço que a nossa diminuta sala anterior, tão pequenina e tão querida. E digo: é um móvel perfeito para minhas escritas, tanto as jornalísticas quanto as gastronômicas e literárias.
Isso me fez pensar sobre como as casas que habitamos e os objetos que as compõem ajudam a definir um pouco de quem somos e do nosso ofício. E essa escrivaninha me lembrou de que sou, desde sempre, jornalista e escritora. E de como, às vezes, a gente tem dificuldade de se apropriar dos nossos próprios ofícios.
Quando a gente tem um diploma, como o meu, de Jornalismo, parece simbolicamente mais fácil abrir a boca e dizer: “sou jornalista”. Num dos exercícios da faculdade, lá nos idos dos anos 1999, 2000, um dos professores propôs justamente que cada aluno levantasse da cadeira e, de uma maneira meio teatral, dissesse a frase que escrevi ali em cima: “eu sou jornalista”. Na época, achei apenas uma tentativa meio boba de reforçar a profissão.
Hoje, vejo essa experiência com outros olhos: era uma forma, sim, de estimular nossa autoestima em relação ao jornalismo, uma forma de fazer a gente se apropriar do rótulo, “jornalista”. Sem dúvida, sem viés, só isso, puro e simples, sou jornalista e ponto.
“Eu sou escritora”
Já o rótulo de escritora, para mim, não foi tão fácil de sair assim da boca, leve e solto como deveria ser. Não existe diploma de escritor. Existe, sim, a vivência, o livro publicado, a chancela “dos outros”. Eu fiz tudo isso, ao longo da minha trajetória profissional. Por que, então, demorei tanto a me dizer escritora? Escrevo desde os 10 anos, já fazia ali meus primeiros livrinhos de histórias ingênuas de menina, com suas princesas, monstros e heróis desenhados a canetinha. Mas, mesmo depois do lançamento do meu primeiro livro, ainda relutava em dizer: “sou escritora”. Isso vem mudando, conforme me firmo mais em mim mesma, conforme vou reescrevendo minha própria história, revendo minhas percepções.
Diz a Eliane:
“Tive várias escrivaninhas ao longo da vida, de fórmica à penúltima, toda modernosa, feita com madeira de demolição. No sábado, comprei minha última, a minha própria Xerife. Por que só agora? Porque só agora a mereci.”
Se você me perguntar qual era meu sonho de infância, vou te dizer que sempre foi ser escritora. Acompanhei meu pai numa Bienal do Livro, quanto tinha uns 10, 11 anos, e vi ali Marcos Rey, um autor que me acompanhou por toda a adolescência, com seus títulos da série Vaga-lume.
Quando olhei para aquele senhor de cabelos brancos, assinando os livros que eu amava, pensei: é isso que eu quero ser. Eu quero escrever. Eu sou escritora. E por que eu digo isso agora, só agora, após tantos anos escrevendo, inclusive, profissionalmente? Porque, fazendo coro com Eliane, “só agora eu mereci”.
Só agora me dei a permissão necessária para ser exatamente a mulher que sou, sem atraso e sem demora. Agora, aos 46 anos, com a vida tomando um rumo diferente, mais amoroso e gentil, decidi voltar a acolher meus sonhos antigos: publicar meus livros, escrever tantos outros, começar meu site e retornar para a graduação em nutrição. É algo que devo a mim mesma, que mereço fazer.
Espaço para o merecimento
E a casa nova me permite isso também. Ela, em si, faz parte dos meus devaneios mais antigos, com seus quintais, suas plantas que emolduram as portas, sua pequena área de serviço lá atrás, pertinho do jasmim e dos hibiscos, onde o gato gosta de fuçar e as crianças amam brincar. Onde a gente curte levar uma tacinha de vinho e filosofar sobre a vida e sobre o amor, que nos abraça todos os dias com suas mãos tão delicadas.
Esta casa, que a gente chamou poeticamente de “casa das flores”, por conta da profusão de plantas e de azulejos com motivos florais, está nos permitindo não apenas ter mais espaço externo, mas, sobretudo, interno: nos dá permissão para ser o que somos, o que sempre fomos. Uma casa, com uma escrivaninha, que me permite, finalmente, ser a escritora que sou, em toda a amplitude da palavra. Que permite ao Rafa ser o artista que sempre foi, com seu olhar curioso e especial sobre a vida. Esta casa tão linda, ela nos fortalece. Porque a gente merece, finalmente.
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Revista Com Limão e Sal
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